O Caráter Multidisciplinar das Artes Marciais
O fascinante mundo das artes marciais costuma causar impactos em pessoas leigas e não leigas. Nas primeiras, esse impacto deve-se ao primeiro olhar de turista, deslumbradas pela ação magnética causada pela plasticidade dos movimentos, ou mesmo pelo mero visual dos uniformes ou, ainda, por qualquer outro fator de interesse pessoal do expectador. Nas últimas, geralmente é mantido por motivos mais significativos, como o sentido que as artes marciais causam no modo de ser do praticante, suas transformações físicas, mentais, intelectuais, comportamentais e espirituais, decorrentes de anos de treino e dedicação.
Para quem é leigo, artes marciais podem ser confundidas facilmente com outros enfoques dados a essas práticas, que não o originalmente voltado para autodefesa, mas os que se diversificam em várias outras aplicações, das mais realistas às mais fantásticas, onde quer que a imaginação humana possa chegar como, por exemplo, de seu uso para meras coreografias cinematográficas ou de espetáculos artísticos e de entretenimentos diversos, ou para fins esotéricos, e ainda a pretensas técnicas de "defesa pessoal" nos chamados McDojos* espalhados por aí, etc.
Esta matéria trata justamente do caráter multidisciplinar das artes marciais, desde sua aplicação nuclear - ciência do combate -, até âmbitos percebidos por quem tenha visão mais profunda, ampla e elevada de suas abrangências.
Como supramencionado, as artes marciais têm como escopo primordial a defesa da liberdade e da dignidade física e moral; para isso foram criadas, em todas as partes do mundo, onde quer que houvesse a necessidade de autoproteção contra agressões, desde o nível pessoal, até comunitário e o de nação. Assim, sua disciplina primeira é do âmbito da Segurança. Toda pessoa pode ser educada e treinada para usar seu próprio corpo como arma, e a desenvolver habilidades de usar armas variadas para se proteger de atos violentos perpetrados por agressores contra si. Do mesmo modo, todo grupo de pessoas que se veja ameaçado, por qualquer motivo, seja torpe ou movido por discriminações de todo tipo, especialmente falando-se de crimes contra diferenças sociais ou contra a humanidade - os da ordem dos Direitos Humanos -, toda minoria tem seu direito de se defender. Em uma esfera maior, toda comunidade ou nação tem suas formas de proteção. Obviamente, inclui-se, aqui, a segurança pública e a segurança nacional. Em quaisquer casos, o Direito à Vida de toda pessoa é o mais legítimo e precioso.
As artes marciais são práticas físicas e, consequentemente, as atividades inerentes a elas, se bem orientadas, promovem o bom desenvolvimento corporal como um todo e o bem-estar físico das pessoas. Sendo assim, falamos do âmbito da Saúde. É muito importante que mestres educadores em artes marciais tenham conhecimento e bom senso ao ministrarem suas práticas, de modo a garantirem uma boa qualidade da saúde dos praticantes. Técnicas duvidosas ou não experimentadas devem ser submetidas antes à crítica, à avaliação e à aprovação ou reprovação, sempre. Aquilo que a tradição comprovou, mantenha-se, de acordo com a autonomia e a sabedoria dos verdadeiros mestres.
Além disso, artes marciais promovem intercâmbios culturais, compreensão de visões de mundo diferentes, por suas origens em diversas partes deste planeta. Alimentam a curiosidade do praticante, ao fazê-lo abrir sua mente, a sair de seu pequeno universo conhecido, de sua zona de conforto pessoal e social, para ter contato com diversidades e outros processos de ensino e aprendizagem, a desbravar um caminho aberto para uma expansão de consciência. Por essas características tradicionalmente passadas, de geração a geração, de mestres a discípulos, as artes marciais expressam-se como pontes de conhecimento, construtoras de cidadãos que agem positivamente na sociedade e no mundo, contribuindo para uma convivência pacífica, humanamente equilibrada. Nesse sentido, as artes marciais inserem-se na grande área da Educação.
Artes marciais são formadoras de pessoas, moduladoras de caráter, transformam e orientam vidas, permitem a indivíduos de índole agressiva e violenta a tornarem-se humildes e respeitosos, e quanto aos tímidos e medrosos, a desenvolverem altivez e coragem. Ao lado do aspecto educativo, portanto, as artes marciais manifestam-se como Psicologia aplicada, por abrirem aos praticantes oportunidades de desenvolvimento de seu autoconhecimento, forjando-os no domínio de seus pensamentos, sentimentos, comportamentos, e, assim, mergulhando-os na construção de sua personalidade - uma personalidade amadurecida pelos desafios cotidianos inerentes às práticas físicas, técnicas, táticas, estratégicas, colaborativas, participativas, éticas, morais, cidadãs, tornando-os sujeitos conscientes de suas atitudes no meio em que vivem.
Uma vez que tenham origens em partes as mais diversas do mundo, onde quer que grupos humanos tenham lutado por sua sobrevivência, tendo seus atos registrados em documentos, ou preservados em narrativas orais, ou outras fontes consideradas e comprovadas como autênticas para posterior estudo, as artes marciais têm sua ligação com o passado. Logo, entram no âmbito da História. Controvérsias à parte, levando-se em conta questões de veracidade de fontes, embrenhando-se por fatos e lendas, atribuições de legitimidade de linhagens a (in)certos mestres ou povos, o fato é que as artes marciais são uma marca indelével de sua importância para a história da humanidade, mesmo para a existência dessa, dada a relevância que, até hoje, desempenham os manuais de estratégia militares para forças de segurança privadas, públicas, especiais, nacionais e internacionais.
Quando de sua aplicação na vida do dia a dia, da necessidade eventual de uma legítima defesa, as artes marciais entram no cenário do Direito, pois são provedoras de conhecimentos, habilidades e competências para a defesa da vida, da dignidade física e moral, da liberdade, do direito de ser quem se é, para que ninguém seja posto na condição de vítima de violências. Toda sociedade democraticamente constituída possui uma legislação que, em grau maior ou menor, trata de proteger seus cidadãos. Independente de códigos legais, o fato é que a vida é um bem supremo. Se há leis e forças de segurança ineficazes, ou mesmo coniventes com a violência, de um modo ou de outro, toda pessoa deve se julgar no direito de se defender. As artes marciais educam nesse sentido: de garantir autodefesa em função da paz e da harmonia. A pessoa que faz uso de arte marcial como legítima defesa, fá-lo tão somente para não ser vítima de agressão, mas nunca para se converter em agressor. Protegido ou não pelo Estado, todo cidadão tem a vocação e o poder para se desenvolver como artista marcial, para ser competente na ciência da autodefesa e para agir de modo justo, dosando os níveis de força, para preservar sua vida e as de pessoas inocentes, e até mesmo a do agressor, quando for o caso.
Conforme o exposto acima, se há uma educação, tanto para a pró-ação quanto para a reação corretas contra a violência, as artes marciais são responsáveis no que diz respeito à promoção da Cidadania, sendo indiscutível e inestimável esse benefício à sociedade.
Num âmbito maior, pode-se dizer, com propriedade, que as artes marciais são uma forma aplicada de Diplomacia. Constam de grandes manuais dessa cultura de combate, como o famoso Arte da Guerra, de Sun Tzu, que o "verdadeiro mérito é planejar secretamente, deslocar-se sub-repticiamente, frustrar as intenções do inimigo e impedir seus planos, de maneira a que, finalmente, o dia possa ser ganho sem o derramar de uma gota de sangue”. Ou seja, trata-se da arte de antecipar ao ataque, desmobilizando as forças do agressor, ou ainda, desencorajando-o a prosseguir com seus intentos mais violentos; diz respeito a criar um campo de defesa para além das vias de fato, que pode começar já no plano da espionagem, da obtenção de informações, do uso da linguagem e da comunicação eficazes como barreiras e trincheiras que impedem que o pior aconteça e, assim, preservando vidas, de todos os lados. Mestres de artes marciais são, antes de tudo, mestres da estratégia, da administração do conflito. São diplomatas por excelência.
O seguinte aspecto é típico das artes marciais que surgiram em contextos de resistência, de táticas de guerrilha, quando desenvolvidas por guerreiros e guerreiras que buscaram se livrar de opressores invasores de seus domínios, diante da necessidade de adotarem uma vida simples, forçados a uma alimentação frugal, a uma economia de modo geral, o que lhes forjou um modo de ser e de sobreviver sustentável, harmonizado com o meio, com a Natureza. Logo, o senso da Ecologia lhes orientou para a sobrevivência e os educou num estilo de vida minimalista, por assim dizer. Dessa maneira, artistas marciais imbuídos desse espírito são protetores do meio ambiente e adeptos de um modo de vida simples.
E quando todas essas características se tornam impregnadas no corpo e na alma do praticante, uma mudança significativa e importante é operada, pois ele não mais enxerga as artes marciais pelo olhar de turista, para quem algo pode parecer à primeira vista deslumbrante, mas que não vai além do superficial; ao contrário, o praticante que passou do nível de mero aprendiz, tendo repetido incontáveis vezes tudo o que aprendera de seus mestres, mas que refinou com o tempo sua visão pela capacidade de olhar simultaneamente para fora e para dentro, de analisar e ver conexões desses ensinamentos com tudo o mais na vida, eleva-se à condição de iniciado nos segredos das artes marciais e, mais ainda, quando conclui que o Caminho que percorreu lhe permitiu lapidar corpo, mente e espírito, num todo harmonizado, integrado a todas as formas de vida, ao Cosmo, é que então pode ser chamado de Mestre. É nesse estágio que percebe que as artes marciais são, ao mesmo tempo, uma filosofia de vida, autêntica Filosofia.
Uma instância a mais que gostaria de citar, talvez a mais realizadora possível de uma existência humana, seja o fato de que as artes marciais, para quem as vive de modo integral e intenso, para quem delas se alimente e em contrapartida as realimente, como portadores vivos da sabedoria guerreira ancestral, sejam, em última análise, manifestação da ética do cuidado, uma vez que se constituem da nobre atribuição da alma humana para a convivência digna, harmônica, livre e segura, ou seja: Artes Marciais são puro Amor. Por mais paradoxal que isso possa parecer a certos olhares.
Eis o que tinha a dizer: que as artes marciais são uma área do conhecimento de extensão muito vasta, muito fértil, muito preciosa e, por isso mesmo, merecem uma atenção mais cuidadosa e uma apreciação mais adequada, dignas de uma importância a ser reconhecida pelos setores mais nobres da sociedade e, de modo ainda mais especial, por seus próprios praticantes e educadores - esses que são os guardiões dessa ancestral tradição autônoma, guerreira, sábia, amorosa, vital.
* McDojos: locais de ensinamentos duvidosos, não amparados por tradições sérias, nem por evidências e comprovações, mas movidos por interesses escusos e financeiros, os quais devem ser evitados a todo custo por quem deseje aprender artes marciais de modo autêntico e seguro.
"On Ko Chi Shin."
"Aprender do antigo para entender o novo."
Provérbio marcial oriental
"Buscar o que os antigos mestres buscaram, não o que eles encontraram."
Matsuo Basho
"Ser é ousar ser."
Hermann Hesse
"Acordar para quem se é requer desapego de quem você imagina ser."
Alan Watts
"Quando você se expressar livremente, terá o estilo."
Bruce Lee
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