Erro Médico. Erro Social.
Muitas vezes é difícil entender por que certas coisas acontecem. E mais ainda como acontecem. O pior é ficar sem explicação.
Três horas na fila de espera para atendimento. Deveria ser de emergência, mas havia inúmeros em condições semelhantes para um tratamento tão impessoal quanto desumano. Na entrada estavam, mais ou menos, uns oitenta cidadãos, em pé, sentados, deitados no chão e mesmo quem nem conseguisse passar da porta.
A senhora era hipertensa e tinha passado mal, após o almoço de Dia das Mães. Fora levada pelos filhos, às pressas, já que não se podia contar com nenhum tipo de socorro disponível pelo Estado, nem mesmo com serviços alternativos, pois há muito que já haviam sido extintos por determinações legais. Mas sabia-se que pelo menos três médicos estavam presentes, no momento, no Hospital de Ceilândia.
Quem é cidadão comum e depende da boa vontade dos órgãos públicos para ter atendimento de saúde, sabe muito bem que não exite diferença alguma entre essa realidade e a dos presídios brasileiros. Você simplesmente morre, de uma morte indiferente, lenta e indigente. O Estado não diferencia cidadão comum doente de sadio, se trabalha ou é presidiário, se inocente ou culpado. Só os reconhece enquanto contribuintes, quando da declaração de Imposto de Renda, e eleitores, em dias de eleição.
Pessoas se acotovelavam pedindo prioridade, entre mulheres grávidas, idosos, crianças pequenas, três portadores de necessidades especiais. Afora esses, haviam todos os outros. Chegavam a se ofender mutuamente, cada um alegando possuir mais direitos a um atendimento mais prioritário do que o outro. O clima estava tenso, quase para estourar em algo pior, dado que não se suportava mais de tanta espera; toda impaciência exaurida pelo cansaço, nervosismo e sentimento de descaso, estampados em cada rosto. Alguns já apontavam para algum tipo de revolta iminente. Mas eram apenas rostos, todos desconhecidos, anônimos - a mesma massa da cara social amorfa, impessoal, segregada, sovada, do pão que o diabo amassou.
Tudo diante da mais completa frieza e apatia dos profissionais do hospital. Afinal, isso não passava de apenas mais um dos 365 capítulos de mesmas cenas efêmeras, de todos os anos. Teatro da forma mais oprimida possível.
Passadas três horas e dezessete minutos, enfim chamam pelo nome da matriarca, que ostentava 84 anos de idade em sua identificação. Um dos filhos fazia imprecações contra o atendimento, a filha mais velha rogava praga contra o governo e um terceiro, o mais novo (a quem a senhora era mais apegada), dava mostras de que a qualquer momento poderia descontar todo seu ódio contra o primeiro médico que aparecesse à sua frente. E só foi permitida a entrada de um acompanhante. A família concordou com o mais novo, que insistia em não se apartar da mãe tão querida.
Na sala de atendimento, a velha fora colocada sobre uma cadeira que, de tão usada e carcomida pelo deus do tempo, caía aos pedaços. Tirariam sua pressão. Mas quem iria medir a pressão psicológica do ambiente? A da senhora estava a 17/10. Já a pressão social... Alguém se dá conta de que injustiça social existe, e também mata, todos os dias? Quantos não são mortos por nem sequer conseguirem pagar uma condução para os primeiros socorros!
O médico, como de praxe, nem sequer ergueu as vistas para a família ali presente, quanto mais realizar o movimento apropriado à profissão do clínico - a de se inclinar para a análise e anamnese do paciente! E o que lhe importava o que havia na frente dele, se mais uma pessoa, um animal, um vulto? Apenas mais uma coisa, um estorvo a lhe causar todo aquele incômodo de ter que estar ali, quando não podia mais contar os minutos para fazer os últimos preparativos de sua viagem de cruzeiro pelo Mediterrâneo, com seus amigos de farra do tempo de faculdade... Sua imaginação ia longe... Já podia até sentir o ar do mar no rosto, o sol ameno, a culinária tradicional italiana, o chardonnay francês, a estadia na costa da Croácia, a contemplação de gente bonita das praias e das casas noturnas...
Voltando, ou ainda fora da realidade, receitou às pressas um medicamento para ser administrado imediatamente e, disfarçadamente, aprontou-se para sair. Não chamou o próximo paciente, nem mesmo se despedira da senhora, como nem dera um boa tarde. Avisou na secretaria que encerrava por ali seu último ato de caridade do dia. Tinha coisas mais importantes a fazer e... a vida não podia esperar!
Saiu de modo que ninguém o percebesse, direto ao estacionamento, onde estava seu Porsche 911 Carrera, com mais pressa do que o nome do carro sugere, se ligado ao verbo que incita a pegar a estrada e sair em disparada.
Lá dentro, na enfermaria, mais inesperado do que o médico ter sumido do mapa, foi a partida súbita da senhora de 84 anos, não se soube o porquê na hora, mas o fato é que, assim que tomara o medicamento, instantes depois viera a óbito. Em pleno Dia das Mães!
Desespero total da família! Enquanto os filhos da idosa, que ao todo eram quatro, vagando entre lágrimas de dor e estado de sem sentido, e tendo que tomar as providências cabíveis a uma situação de tamanha agonia, aquele terceiro filho, meio atônito e meio autômato, correu ao estacionamento, tomado por um sentimento que não sabia de onde vinha. Pareceu ter sido arrebatado para lá, por alguma força estranha, como se uma voz divina lhe indicasse a pista para o conforto de seu coração desnorteado e despedaçado. Chorava um choro silencioso, mas pungente, denso e ardente, como vulcão em vias de erupção.
Foi, mas não conseguiu realizar seu intento. Sua mente só teve tempo de avistar a placa do carro... Só o que lhe restou: apenas um pequeno retângulo sumindo rápido na distância... Tarde demais! Vencido, correu para onde estavam os irmãos.
Foram informados que o médico só estaria de retorno dali a um mês, pois que acabara de sair de férias. O caçula, num lampejo iluminado surgido do meio de espessas trevas de amargura, quis conferir o CRM do homem do jaleco branco: o papel estava meio apagado da marca do carimbo, mal impresso por mão displicente; mas podia ainda ver o nome e o número, em cores menos arroxeadas que os olhos do jovem. O receituário mais parecia uma lápide funerária. O hospital publicara uma breve nota, mera e laconicamente: "Erro médico". Se a família quisesse algo mais, que buscasse pelos próprios meios.
Nisso, algo acendeu na alma do caçula uma reação semelhante ao do jovem deus da guerra, Ares, o Marte dos romanos; mesclado com a ânsia típica da deusa Temis. E, como a vontade dos deuses não pode passar incólume - embora isso aconteça com a justiça dos homens, que algumas vezes tarda e falha, e outras nem chega -, ele apressou-se. Tinha uma missão urgente a cumprir, custasse o que que custasse.
O velório aconteceu às 10 horas da manhã do dia seguinte, e o enterro às 16 horas do mesmo. Nenhuma forma de maiores informações ou de mínimos recursos coube à família.
O que ninguém ficou sabendo, até a notícia sair nos meios de comunicação, é que o médico não havia aparecido para pegar seu avião para a Europa. A família desse, moradora de uma mansão do Lago Sul, não sabia de seu paradeiro desde as 20 horas e 30 minutos do seu último dia de trabalho. Disseram que ele havia se desentendido, outra vez, com sua esposa, quando estava já com as malas prontas. Apenas saiu de casa, sem nada lhe dizer. Ele soubera, há mais ou menos dois meses atrás, por meio de uma de suas estagiárias, a mais íntima, que sua mulher estava tendo um caso com outro médico - um colega de clínica particular da companheira, que também exercia a medicina. De sua parte, a esposa não sabia que a viagem tinha sido planejada pelo médico há um bom tempo. Ele e seu seleto grupo de amigos e amigas haviam guardado tudo no mais completo segredo. Ao que parece, a viagem seria a ocasião perfeita para uma desforra, em alto estilo, às traições da esposa. O fato é que ele tinha ido sozinho pegar o voo, marcado para sair às 22 horas daquela noite ambígua, antecessora do nebuloso dia do velório da matriarca, morta pela indicação de um medicamento inapropriado - notícia que apenas os cegos leram, os surdos ouviram e os mudos comentaram.
Enquanto a família da mãe enterrada voltava, cada um para suas casas, estava circulando nas redes sociais e canais de mídia jornalística a notícia de que um médico, que atendia no Hospital de Ceilândia, fora encontrado morto, dentro de um carro de luxo, por um catador de latinhas que comunicou do fato à polícia. O local onde encontraram o corpo fora as imediações das margens da Ponte Costa e Silva, para uns, para outros Honestino Guimarães. Parece que havia sido seguido e abordado por bandidos, não se sabe quem, quantos, nem o motivo. A hipótese primeira seria a de roubo seguido de morte - porém, nenhum bem, nem dinheiro ou cartão bancário havia sido levado, nem mesmo o valioso Porsche branco, agora não tão branco, porque manchado de vermelho. Tratar-se-ia de crime passional? Não foram encontradas evidências disso.
O único fato que não deixou de ser motivo de espanto e de infindáveis questionamentos, tendo descambado ainda para memes e discursos de ódio de classe, e até mesmo de horror por parte da sociedade, com repercussões até no exterior, foi uma placa branca em forma de cruz, com uma haste de 40 cm e um retângulo de 15 cm X 30 cm, trespassada no coração do médico: estava muito bem encravada, em perfeito equilíbrio, sem pender para um lado nem para outro e trazia, em vermelho vivo, composto de tinta e sangue - o que marcou profundamente as manchetes do dia e a memória popular de forma inesquecível, a misteriosa inscrição:
"Erro Social".
Alguns poderão dizer que esse fato foi apenas mais uma das aplicações da chamada "lei do retorno", o famoso "aqui se faz, aqui se paga", ou "muitas coisas na vida não têm preço, mas todas têm troco". Prefiro apenas dizer: mistério.
SANTOSHA