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A narrativa e o combate interno do guerreiro, em “Portões de Fogo”, de Steven Pressfield, como jogos

A narrativa e o combate interno do guerreiro, em “Portões de Fogo”, de Steven Pressfield, como jogos de luzes e sombras – uma leitura junguiana

Max Müller Cerqueira Sobrinho

RESUMO

O sentido da análise que se propõe é o de estabelecer como elemento formal uma estética de jogo de luzes e sombras, tanto quanto à escolha da narrativa da obra em foco, elaborada por múltiplos pontos de vista, quanto ao combate interno do guerreiro, sendo este um arquétipo em luta com sua sombra, em processo de amadurecimento psíquico. Para tanto, utilizou-se do romance histórico: “Portões de Fogo”, de Steven Pressfield, uma narrativa do sacrifício dos Trezentos de Esparta e seus aliados, contra a invasão persa, na Batalha das Termópilas de 480 de antes de nossa Era, com o objetivo de se buscar traços da evolução de espartanos, entendidos neste trabalho como manifestação do que os pós-junguianos Robert Bly, Robert Moore e outros, chamaram de arquétipo do masculino maduro. Uma leitura junguiana a partir de vestígios do inconsciente na escrita.

Palavras-chave: Arquétipo do Guerreiro, Sombra, Masculino Maduro, Psicologia e Literatura, Inconsciente e Escrita.

The narrative and the warrior’s internal struggle as play of light and shadow in Gates of Fire by Steven Pressfield – a Jungian interpretation

ABSTRACT

The aim of the analysis in this article is to establish as a formal element an aesthetic play of light and shadow, in relation to the choice of the narrative in focus – elaborated by multiple points of view, as well as the internal struggle of the warrior, an archetype in struggle with his shadow, in the process of psychological growth. As such, the historical novel Gates of Fire by Steven Pressfield is discussed, which is a narrative about the sacrifice of the Three hundred of Sparta and their allies against the invasion of Persia, in the Battle of Thermopylae in 480 BC. The objective is to find traces of the evolution of the Spartans, understood in this study as a manifestation of what post-Jungians, Robert Bly, Robert Moore and others call the archetype of the mature male. One presents a Jungian interpretation based on traces of the unconscious in the narrative.

Key-words: Archetype of the Warrior, Shadow, Mature Male, Psychology and Literature, the Unconscious and the Narrative.

“Viver é combater.” Sêneca, em “Cartas a Lucílio”.

“Nunca dê uma espada a um homem que não sabe dançar.” Ditado celta.

“O artista usa botas de combate.” Steven Pressfield, em “A Guerra da Arte”.

A necessidade de autoproteção, de si, de uma comunidade, de uma nação ou país, levou à organização de forças de defesa especiais. Historicamente, em todo o mundo temos exemplos notáveis de guerreiros que se organizaram em escolas preparatórias, mosteiros, casernas, para estudarem táticas e técnicas de defesa, tendo em vista a salvaguarda de suas comunidades e seus interesses. Desse modo, a humanidade conheceu os kshatryas (casta de guerreiros) indianos, os temíveis hoplitas de Esparta, os legionários romanos, os monges Shao Lin chineses, os ninjas e samurais japoneses, os cavaleiros jaguares e cavaleiros águias astecas, os cavaleiros medievais europeus, entre tantos outros, cada um com seus próprios métodos de combate e particulares códigos éticos e morais de conduta. E, justamente, a partir daí, que o arquétipo do guerreiro tornou-se marca indelével no inconsciente coletivo, transpondo eras e lugares.


Carl Gustav Jung, expoente da psicologia analítica, também chamada de psicologia profunda, ou ainda, junguiana, em “Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo” (2014: 51-52), descreve o conceito de arquétipo como sendo um conteúdo inconsciente, modificável por sua conscientização e percepção, diferenciando-se conforme manifestações da consciência individual. Arquétipo indica determinadas formas na psique humana, temas recorrentes, padrões onipresentes, e que é mais claramente abstraído a partir dos mitos, dos ensinamentos esotéricos, dos contos de fadas, das narrativas orais, entre outros meios. O inconsciente coletivo, de sua parte, representa a acumulação de experiências milenares da humanidade, e se exprime por meio dos arquétipos.


Arquétipos definem os conteúdos eminentemente humanos, da nossa psique, que fazem o elo essencial entre os seres dessa mesma espécie, presentes e manifestos em todos os tempos, lugares, etnias e culturas.


Para Robert Moore e Douglas Gillette, em sua obra "Rei, Guerreiro, Mago, Amante - a redescoberta dos arquétipos do masculino" (1993: Introdução), conteúdos inconscientes maculados pela sombra[1], postulados por Carl G. Jung, têm raízes no patriarcado. Para os pesquisadores estadunidenses, o patriarcado seria fundado no medo – medos típicos de criança, medos de masculino imaturo. Em sua percepção, Moore e Gillette atestam que a criança tem medo tanto de mulheres, como também de homens – de homens de verdade. Se tais conteúdos não forem assumidos de forma madura, o que se tem é que "os que se prendem às estruturas e à dinâmica desse sistema buscam dominar igualmente homens e mulheres”.


No entanto, esse problema não seria exclusivo de masculinidade, mas também de feminilidade imatura:


“É possível, na verdade, que nunca tenha havido na história da humanidade um período de ascendência da masculinidade (ou feminilidade) amadurecida. Não temos certeza quanto a isso. O que sabemos é que ela não predomina atualmente”. (1993: idem)


Como consequência, ter-se-ia crianças mal formadas, dominadas pelas marcas sombrias do arquétipo do Puer aeternus (a ‘eterna criança’ dentro de nós), mesmo enquanto pessoas em idade avançada. Moore e Gillette defendem que, ao contrário do que se possa pensar, a "nossa sociedade é violenta não por causa de um excesso de masculinidade, mas, sim, devido a uma carência de masculinidade madura", cujos valores arquetípicos são formadores de uma psique desenvolvida em quatro aspectos: soberana (Rei), protetora (Guerreiro), criativa (Mago) e amorosa (Amante).


Do conceito de sombra, Andrew Samuels, em “Jung e os pós-junguianos” (1989: 117) descreve-a como: “patologicamente, uma rejeição da instintividade, logo uma despotencialização da personalidade, ou uma projeção de facetas inaceitáveis da personalidade sobre os outros”, e ainda: “uma forma de inflação negativa que se expressa em forma de autodepreciação, falta de autoconfiança, medo do sucesso (e um estado ‘analítico’ peculiar em que tudo é reduzido a motivações inconscientes obscuras e desagradáveis)”.


Paolo Francesco Pieri, em “Dicionário Junguiano” (2002: 434), dá ao conceito mais contornos:


“Na psicologia analítica o termo é assumido como o significado específico do outro lado da personalidade e, por isso, daquela parte obscura da psique, enquanto tal inferior e indiferenciada, que, de diversos modos, é necessariamente remetida (e operativamente remissível) à parte superior e diferenciada da própria psique durante o processo de individuação.”


Para maior esclarecimento, Jung, em “Sobre sentimentos e a sombra” (2015), assevera que a sombra não é necessariamente má. Ela é algo íntimo e inquietante, ao mesmo tempo transformadora da psique. Ela sempre existirá como lugar de possibilidade para autoconhecimento e amadurecimento, em meio a desafio, dor e desestruturação do ego – um pouco do que o bobo faz com o rei: trazê-lo ao mundo dos pés no chão. A sombra seria, para Jung, em outras palavras, um “mal” necessário:


“O fato de sabermos que o mal é real, tão real quanto o bem – é isso que encarrega a teologia de um problema muito difícil. (...) Gostaria de poupá-los, mas é um problema enormemente difícil, isto é: Como lidar com o lado da sombra?” (Idem: 62)


Ele mesmo diria, em “Psicologia do Inconsciente” (1980: 87), que há um “medo arcaico dos conteúdos do inconsciente coletivo”. E que:


“O diabo é uma variante do arquétipo da sombra, isto é, do aspecto perigoso da metade obscura, não reconhecida pela pessoa.” (Idem: 86).


Pessoa, neste caso, o ego.


A. Samuels (1987: 43), delimita melhor sobre esta relação entre ego e sombra:


“Embora seja possível que o ego se torne consciente daquilo que está contido na sombra, essa consciência jamais poderá ser total. O paradoxo está no fato de que tornar alguma coisa consciente também engloba a inconsciência porque uma está sempre em relação com a outra. Quando a ego-consciência ilumina alguma coisa, o que está na periferia fica na escuridão.”


De acordo com o sítio eletrônico ManKind Project International[2] , o qual se ocupa de pesquisas e partilhas com pessoas do mundo todo, sobre o comportamento, o modo de ser masculino, como forma de resgate do homem não subjugado pelo patriarcado, os homens de hoje estão carentes de energia guerreira.


Para os estudiosos e homens do sítio supracitado, interligados nessa rede de reconstrução do masculino, nós, nossos pais e nossos filhos fomos mal informados e mal educados, em todas as nossas vidas, de que a agressividade é algo ruim e que nós, homens, deveríamos apenas trabalhar para sermos "caras legais". Porém, verificaram que o que o mundo mais precisa, atualmente, é de homens que acessem e vivenciem o Arquétipo do Guerreiro.


O Guerreiro, a Guerreira, na linguagem da psicologia analítica arquetípica, é a energia interior que nos impulsiona a desafiarmos e a lutarmos por uma causa digna, seja no âmbito pessoal, seja no social ou no geral.


De certa forma, podemos entender que somos, todos, guerreiros, desde nosso nascimento, até nossa passagem. Agora, aprender a lidar com as sombras no caminho do guerreiro, e daí se tirar lições sábias e vitais, isso é para poucos. Porque requer iniciação, a qual se faz por ensinamentos, como os das artes marciais, de mestres a discípulos, por conselhos de verdadeiros orientadores e guias (o mentor, o “ancião do ritual”, o xamã, o pajé, o guru), ou por leituras aprofundadas sobre o tema – o qual se encontra na literatura mundial, na psicologia, nos estudos de casos de antropólogos, e entre outras fontes que a própria vida nos dá, no dia a dia. Requer, inclusive, um longo processo de autoconhecimento, físico, mental e espiritual. Portanto, não é uma tarefa simples de se conseguir, sem o compartilhamento de experiências individuais e coletivas.


O objeto de estudo desses pesquisadores, e de outros grupos espalhados mundo afora, como o brasileiro “Movimento Guerreiros do Coração”, que ao mesmo tempo constitui-se de uma proposta de estilo de vida, é o mesmo que para autores como Robert Bly, Robert Moore, Douglas Gillette, George Groddeck, Gurdieff, Warren Farrell, Carl Jung, Joseph Campbell, Georges Dumézil, entre muitos outros, é chamado de masculino maduro.


Diz, C. G. Jung, em “O Homem e Seus Símbolos” (1969), que o mito do herói é o mais comum e o mais conhecido de todos os tempos e lugares. Inegável considerar sua capital importância psicológica, como imagem primordial e forma universal, ampla e profunda.


“A figura do herói é um arquétipo, que existe há tempos imemoriais.” (Idem: 73)


Não por acaso, um dos maiores mitólogos de todos os tempos, Joseph Campbell, dedicara toda uma obra e cuidado especial a esse arquétipo, especialmente por sua contribuição pelo o conceito de monomito (também chamado de “Jornada do Herói”), o qual fora tomado emprestado, pelo norte-americano, do conto “Finnegan’s Wake”, de autoria do escritor irlandês James Joyce, para compor o seu famoso trabalho de pesquisa, intitulado “O Herói de Mil Faces”. Importante frisar que Campbell se utiliza em sua obra da concepção junguiana de arquétipo para elaborar o seu conceito.


Segundo o mitólogo estadunidense, monomito é o conceito que identifica, em inúmeras narrativas, desde as mais ancestrais às suas repercussões e representações atuais, as mais variadas, a ideia de uma trajetória marcada no inconsciente universal, pela qual uma jornada exterior reflete um percurso interior do indivíduo – o herói – que, se conseguir completá-la, ele poderá atingir uma maturidade espiritual, sendo esse processo identificável em mitos, contos, narrativas orais, literaturas e outras artes (como o cinema, jogos virtuais, etc), presentes em diversas culturas e épocas históricas. Importante destacar, nesse processo de amadurecimento do herói, o condicional “se”.


Maria Zelia de Alvarenga, em “Mitologia Simbólica: estruturas da psique e regências míticas” (2010) apresenta um estudo dos divinos gregos como regências da consciência, no sentido de viabilizar uma caracterização de tipos humanos e, assim, possibilitar meios para o desenvolvimento da personalidade de cada divino, entendidos, aqui, como estruturas arquetípicas, dentro da abordagem psicológica analítica. À medida que se torna possível essa tipologia, com base nos modelos dos divinos mitológicos gregos, inaugura-se uma nova metodologia para a humanização do arquétipo e, assim, para o desenvolvimento da personalidade de um indivíduo.


Desta forma, ao partir dos arquétipos mitológicos, Alvarenga (p. 163) relata o Hino Homérico a Ares como uma elegia aos méritos, à coragem, à bravura. Deus tido como protetor, mantenedor da juventude, e invocado como aquele que auxilia a perseverar no caminho da paz. No entanto, a mesma autora cita Junito Brandão (“Mitologia Grega”, 1988), o qual nos apresenta outras características, sombrias, de Ares, relacionando seu nome com ‘aré’, ao conotar ‘desgraça’, ‘infortúnio’. Brandão ainda recorda de uma antiga referência ao deus, também chamado “Ara”, que quer dizer ‘maldição’, e de que seu culto seria originário da Trácia, cujo povo era considerado pelos gregos como rude, inculto e bárbaro. Daí, que se torna mais compreensível o fato de que o hino do deus seja uma elegia – composição poética e canto de cunho triste, de lamento, especialmente para funerais –, e que os templos dedicados a ele eram os menos numerosos, comparativamente aos outros deuses, entre os povos gregos.


Ares, na mitologia grega, sempre acompanhava seus filhos, esses, não menos conotadores de desgraças, Fobos (personificação do medo) e Deimos (o terror); e de seus irmãos, Ênio (a devastação) e Éris (a discórdia).


Para Alvarenga, quando tratamos de tipologia, deve-se ter em conta que há arquétipos mais dominantes que outros, portanto, nossas personalidades se expressam por meio de vários, não de apenas um. Sendo assim, conflitos internos são inerentes à nossa personalidade. Uma concordância com Jung, quando se fala do embate com a sombra.


Robert Bly ressalta a qualidade do guerreiro autêntico, de estar a serviço de um objetivo maior do que ele próprio. Para ele, mitologicamente, o guerreiro está a serviço do Rei Verdadeiro, e que se este for corrupto, ou se for ausente, o guerreiro estará servindo por ambição, poder. Desse modo, será nada mais que soldado, não guerreiro de fato. Nas suas palavras:


“Todas as vezes que usamos bem o guerreiro, não estamos apenas travando batalhas, mas acordando o Rei.” (1991: 168).


E que:


“Uma das grandes tarefas do homem contemporâneo é reimaginar, agora que as imagens do guerreiro eterno e do guerreiro exterior já não constituem o modelo, o valor do guerreiro nas relações, nos estudos literários, no pensamento, na emoção.” (Idem: 169).


Lívia Borges, psicóloga junguiana, em sua obra “Alma de Guerreiro” (2006: 78-96), no segundo capítulo, sob o título “Despertando o Guerreiro Adormecido”, reconhece e evoca a necessidade de não se perder a consciência e a dignidade desse arquétipo, mas, ao contrário, de cultivá-la.


“Portões de Fogo” (2001), de Steven Pressfield, escrito originalmente em 1998, um romance épico ambientado em 480 de antes de nossa Era, narra a memorável resistência de combatentes espartanos e outros aliados, a histórica Batalha das Termópilas contra a iminente invasão persa, comandada pelo Rei Xerxes. Os protagonistas maiores são os Trezentos de Esparta, membros da temível formação de soldados da infantaria pesada, conhecidos por hoplitas, pois eram especialistas no uso do hoplon, escudo de bronze marcado pela letra lambda (“Λ”, inicial da região da Lacedemônia), arma esta símbolo especial da cultura guerreira espartana. À frente desses, estava o Rei Leônidas, cujas atitudes o colocavam num patamar diferenciado, se comparado ao próprio rei persa e outros, pois não apenas comandava a partir de um trono, mas lutava, ombro a ombro, na linha de frente, com seus comandados. No decorrer da narrativa, são expostos, sob o ponto de vista do narrador-personagem, Xeones, servo do oficial espartano Dienekes, todo o modo de vida, ideais, costumes e valores desses ilustres guerreiros, tanto em suas experiências militares, quanto nas vivências do cotidiano, em tempos de paz. A Batalha das Termópilas (de ‘termas’, referente a um desfiladeiro da Grécia central, onde se encontram águas termais; daí, “Portões Quentes”), configurou-se uma missão e uma estratégia suicida para a qual foram enviados os Trezentos, para que, ao oferecerem resistência, por uma semana, dariam o tempo necessário para que todo o efetivo de tropas da Hélade se reunisse e, posteriormente àquele combate histórico, pudesse reagir a contento aos invasores – o que, de fato, só se concretizou nas Batalhas de Salamina (480 de antes de nossa Era) e de Platéia (479 de antes de nossa Era).


A narrativa é entremeada por pontos de vista variados e se processa pelas vozes de múltiplos narradores: o narrador geral da história, o qual se manifesta como onisciente, mas que empresta sua voz a personagens, principalmente a Xeones, nativo de outra pólis, Astacus, mas que servia a Esparta, nos campos de batalha, ao lado de seu senhor, Dienekes. É Xeones quem, ferido à beira da morte, resgatado pelos persas, é intimado a contar ao rei Xerxes sobre o modo de ser dos espartanos. É, desta forma, um narrador-personagem. Em outros trechos, a narração passa para Gobartes, historiador oficial do rei, que é quem toma nota de tudo o que Xeones diz. Gobartes faz as vezes de narrador-observador, por não participar diretamente das ações, nem conhecer os fatos, apenas pelo ponto de vista de Xeones. Em outro trecho, quase ao final, Xeones relata um fato, mas na fala da senhora Paraleia, esposa do veterano Olympieus e mãe do jovem Alexandros, para deixar claro aos persas, e ao leitor, o porquê de o general Leônidas ter nomeado os Trezentos, entre homens experientes e alguns jovens, como o próprio filho de Paraleia. Esta escolha da narrativa, desse trecho, numa voz feminina, de uma mãe, evidenciaria melhor as nuances de sentimento que o autor queria dar ao relato. Tudo isso constitui o jogo da narrativa, o qual remete à questão da veracidade e da verossimilhança, na confluência de pretensões de narrar da História e do Romance.


Cabe, aqui, um questionamento: aos olhos do leitor moderno, como apreender esse arquétipo do guerreiro, a partir da proposta de leitura junguiana da obra em estudo? Necessário se faz desvinculá-lo de qualquer representação normativa e se buscar pelos traços deixados pela própria narrativa, sendo ela mesma parte do jogo.


As primeiras linhas da narrativa estão na voz do narrador geral, onisciente, que fala a partir de uma “Nota Histórica” (p. 9), mas que em seguida desaparece, para dar lugar ao historiador oficial dos persas, Gobartes (p. 10), o qual documenta tudo do que o então prisioneiro, Xeones, conta sobre “a história dos soldados da infantaria” de Esparta (p. 13). O tom principal da narrativa é dado justamente por este último, o que o configura, um narrador-personagem, porém, do modo típico dos romances históricos – o que dá voz aos excluídos da história.


Configura-se, assim, uma forma típica de narrativa matrioska[3]. Matrioskas são bonecas ocas, talhadas em madeira, até um tamanho em que não se permita mais um entalhe, como um aninhamento ou nidificação, representando gerações de mulheres, geralmente a ‘avó’, a ‘mãe’ e a ‘filha’, cujo significado implícito é a preservação das raízes de uma cultura. No entanto, pode-se encontrar matrioskas com cinco, seis, até sete bonecas. De todo modo, a ideia é de que sua forma simples, arredondada, simboliza o acolhimento feminino, como que contando uma história do amor materno. Porém, em se tratando de simbologia, toda interpretação é relativa e inesgotável.


O que importa, relativamente à técnica narrativa em si, é que a obra em questão foi construída sobre uma história contada, como que de boca a boca, à maneira das narrativas orais, de modo que cada voz do texto traz uma outra face da verdade, um outro ângulo do prisma narrativo geral. Tal qual a matrioska, tratar-se-ia de um jogo narrativo cuja pretensão é a de evidenciar que mesmo a História tem sua carga de literariedade, e vice-versa: a Literatura carrega, também, seu peso histórico.


Embora as duas obras utilizadas na presente pesquisa sejam exemplos de ficções ou romances históricos, faz-se, neste ponto, uma breve observação, mas não fugindo do foco, que é literatura e psicologia. Apenas para abranger o espectro de compreensão do fenômeno literário.


Considerando o romance histórico como um espaço para o contraditório, para o outro lado da dita “História Oficial”, pode-se questionar até que ponto o histórico embrenha-se pela literatura, e até onde a literatura abarca o histórico, de modo que História e Ficção não sejam tão antagônicas entre si, mas representações nas quais prevalecem as vozes do protagonismo de tal ou tal personagem, desta ou daquela classe social, de acordo com os interesses e as realidades que se queiram manifestar, se inscrever como fato. O literário pode ser mais histórico do que o propriamente histórico, o qual pode ser mais fictício do que uma ficção.


A própria prática da escrita pode estar revestida e investida de fenômenos, em diálogo e interferência entre o consciente e o inconsciente do autor. Daí, que, não raro, a crítica atenta pode encontrar em dada obra literária, manifestações tais quais as estudadas pela linha teórica psicológica em questão, a profunda. Porém, longe de querer uma auratização do texto literário, a partir de tal perspectiva, aqui está apresentada, tão-somente, mais uma perspectiva, dentre todas as existentes. E quando se fala em ‘existentes’, se está referindo a todas, não somente às reconhecidas pelos círculos acadêmicos.


Em “Pólemos e o Belo – O Sistema Canônico Brasileiro – Seminários de Literatura” (2000), Flávio René Kothe entende que o fenômeno literário é superior a qualquer manifestação literária isolada que, ao excluir outras, pretenda se definir como Literatura.


“Os estudos literários voltam-se para um objeto indefinível: a obra literária. Coloca-se a questão central: qual é a natureza da obra literária? – Antes de pretender dizer o que é literatura, é preciso perguntar o que é dizer ‘o que é’. Dar uma resposta à pergunta – o que é isso? – implica assumir o pressuposto da própria pergunta. O é, o ser assim definido, ao pretender universalidade e necessidade, ao propor-se dizer o ser de todas as obras –, pretende dizer o que é literatura para todos os tempos e todos os lugares.” (2000: 7).


Neste caso específico, a interpretação da obra literária: “Portões de Fogo”, de Steven Pressfield, a partir da linha teórica comparatista entre literatura e psicologia analítica, tem como objetivo não ser outra coisa que um, possível, ponto de vista.


F. Kothe traz a questão da polêmica em relação com a estética, como um fundamento teórico sine qua non toda crítica, em arte e literatura, se tornaria inválida, porque propensa a um totalitarismo. Ele evidencia o belo no contraste e a luta de opostos. Há, aqui, uma sintonia profunda com Jung, quando este trata dos pares de opostos. Para o autor suíço, os opostos na psique humana, atuam em contraposição à lógica aristotélica tradicional, partindo do princípio de que eles podem ser reconciliados, de modo a superar possíveis conflitos ou o maniqueísmo típico do pensamento ocidental, o qual é refutado pela filosofia integrativa taoísta, por exemplo.


Em sua obra “I Ching, o Livro das Mutações”, cujo prefácio é de Carl Jung, Richard Wilhelm evoca esse pensamento:


“As coisas que se harmonizam em tom, vibram em conjunto. As coisas que entre si têm afinidade em suas essências mais íntimas atraem-se mutuamente.” (2006: 292).


Isto quer dizer que, ao mesmo tempo em que se fala de uma luta de contrários, está implícita uma força de atração. Diálogo é isto. Polêmica também. Há uma certa harmonia inerente ao combate. Talvez combate seja entendido como outra forma de dança. Há, inclusive, uma arte marcial oriental, das Filipinas, que se chama “Yaw Yan”, redução da expressão “sayaw ng kamatayan”, que quer dizer “dança da morte”. Outra forma de combate, chinesa, o “Taijiquan”, ou Tai Chi Chuan, se expressa por princípios teóricos e práticos fundamentados no símbolo taoísta do “taijitu” – um círculo dividido em duas partes, sendo uma branca, que contém em si um ponto preto, e outra preta, que comporta um ponto branco, estando ambas, ao mesmo tempo, em contraste, mas em perfeita adaptação uma à outra. Esse símbolo é uma representação de duas forças opostas e complementares, chamadas de “Yin”, o princípio feminino, passivo, noturno, lunar, negativo; e “Yang”, o masculino, ativo, diurno, solar, positivo. Portanto, uma simbologia de uma ‘união de opostos’, numa dança cósmica.


Essa concepção era também comum na Grécia antiga. F. Kothe traz a mesma referência de Heráclito, para embasar seu pensamento:


“Tudo se faz por contraste; da luta dos contrários nasce a mais bela harmonia.” (KOTHE, 2000: 7. Epígrafe).


Assim como o fez C. Jung, em “Psicologia do Inconsciente”:


“O velho Heráclito, que era realmente um grande sábio, descobriu a mais fantástica das leis da psicologia: a função reguladora dos contrários. Deu-lhe o nome de enantiodromia (correr em direção contrária), advertindo que um dia tudo se reverte em seu contrário.” (JUNG, 1980: 64).


Kothe postula que “a verdade não está apenas na palavra, mas no silêncio (ou no gesto)” (p. 17). Trata-se de um silêncio que produz compreensão ou revelação.


“Nesse silêncio está contida a compreensão, que depois pode revelar-se em muitas palavras, mas que não contém substancialmente nada mais do que aquilo que foi entendido sem palavras. Na prática psicanalítica, o mudo intercâmbio do inconsciente do analista com o inconsciente do paciente é que propicia uma compreensão que vai além de qualquer palavra e é capaz, inclusive, de entender a verdade pelo avesso da fala. O escritor recebe imagens, sensações e palavras básicas ditadas por seu inconsciente, oriundas de uma fonte energética que não é anterior a qualquer uma das palavras que procura expressá-la. A percepção estética se dá em um movimento intuitivo, num momento que vivencia sem palavras o transmitido pelo artista.” (2000: 17-18).


Com base nessa ideia, propõe a presente análise que uma obra como “Portões de Fogo”, de S. Pressfield, composta em múltiplas narrativas, contrastantes entre si, manifesta-se como um fenômeno literário que pode ser entendido, nesta leitura, como uma estética de contrários pela qual a obra vai se revelando, conforme cada narrador vai fazendo uso de sua fala, e dando ao leitor, no decorrer da ação, cada vez mais clareza sobre os pontos obscuros dos fatos narrados; ao mesmo tempo, vai evidenciando que, mesmo com todas as palavras, a verdade por ela mesma, ainda permanece sob um véu último – o da verdade estética, sublime, subliminar, que vaga no eterno silêncio que nenhum registro escrito pode traduzir. Assim como a matrioska, uma boneca que esconde outra boneca, que oculta outra, a verdade, também, esconde outras verdades.


“Tudo o que é humano é relativo, porque repousa numa oposição interior de contrários, constituindo um fenômeno energético”. (JUNG, 1980: 68).


Esta leitura entende como fenômeno energético, tanto na abordagem de Kothe, como na de Jung, como aquela moção interior que há em todo ser humano, em seu inconsciente, que faz comunicar por meio de traços cuja imagem é real, mas difusa, por meio de uma linguagem instintiva, para além do código linguístico verbal. Algo como que uma linguagem de almas.


Não detalharemos, aqui, questões filosóficas e linguísticas sobre as palavras e as coisas, porque não é esse o eixo do presente trabalho. Apenas que fique registrado que a compreensão de uma obra literária pode ser feita dentro desses parâmetros de uma crítica literária arquetípica. O fenômeno literário está intrinsecamente ligado ao fenômeno psicológico analítico. Há uma energia no fazer literário, a qual conforma a obra, que se dá a conhecer no processo de leitura, mesmo a partir dos silêncios de suas entrelinhas, dos não-ditos ou das ambiguidades, assim como o analista pode acessar, de alguma maneira, pela prática da análise, um sentido oculto no conteúdo simbólico, expresso no inconsciente de seu paciente.


De volta a “Portões de Fogo”, antes de focar nas táticas, treinamento e na filosofia militar espartana, Xeones faz sua narrativa do modo de ser espartano, a partir do seu próprio ponto de vista, como servo que era. Sendo estrangeiro, Xeones assume na narrativa uma posição de certo distanciamento, assim como era, em realidade, a estratificação social da pólis espartana, em que somente os nascidos de espartanos, Spartiatai[4], é que eram totalmente espartanos, os homoioi –, Pares e Iguais (p. 18). Xeones era um hilota, vivia à sombra de seu senhor, função dos escudeiros dos espartanos. Logo, seu lugar era entre os periféricos da pólis.


Esse distanciamento se percebe da contraposição de um mundo que se pretende solar, apolíneo, regido pela luz, pela razão, pela beleza simétrica, e outro, por seus opostos, sombrio, dionisíaco, irracional, feio, assimétrico. Xeones, ele mesmo, havia sido capturado por donos de uma propriedade, quando tentava roubar alimento para sobreviver. Fora posto suspenso e amarrado pelos pulsos, ferido gravemente nas mãos por pregos que lhe prendiam a hastes de madeira. Essa deformidade teria eliminado para sempre sua possibilidade de poder servir em Esparta, não fosse a intervenção do próprio Apolo-Febo, Deus da Beleza, personificador da luz, codinominado “brilhante, luminoso”, que, aparecendo-lhe em uma visão, oferecera-lhe uma alternativa: já que incapacitado de empunhar a lança (que o próprio deus considerava “deselegante”), poderia usar do Arco e da Flecha (ou seja, seria capaz de lutar... à distância).


Nas palavras desse narrador-personagem e servo:


“E por que ‘deselegante’? Tive a impressão de que a palavra era decisivamente deliberada, o preciso termo que o deus buscava. Parecia conter um significado sutil, embora eu não fizesse a menor idéia de qual pudesse ser. Então, eu vi o arco de prata pendurado em seu ombro.

O Arqueiro em pessoa.

Apolo, o Atirador a Longa Distância.

(...)

O arco.

O arco me preservaria.” (p. 42-43)


Sob apelo do deus, Xeones jura servi-lo. E é sob sua proteção que, ao modo dos poetas e narradores clássicos, invoca-o, para iniciar suas narrativas. Entretanto, há uma sombra nessa narrativa que aponta para outro foco, que pode estar numa luz, no fim desse túnel interpretativo. Há indícios de que a história narrada por um servo possa não condizer com a verdade, de que ela não seria digna de crédito. Nesse ponto, é o historiador Gobartes quem conta, ao expor a palavra do general Mardonius ao rei Xerxes:


“_ Por que se afligir, Senhor, com essa história contada por um escravo? Que significado pode ter a história de oficiais obscuros e suas guerras triviais, (...)? Não se inquiete mais com essa fantasia engendrada por um selvagem que o odeia e odeia a Pérsia com cada nervo de seu corpo. Aliás, suas histórias são mentiras, se quer a minha opinião.” (p. 174)


O que fora “desmentido” por Sua Majestade:


“Pelo contrário, meu amigo, acredito que o relato desse homem é verdadeiro em todos os aspectos, embora não possa garanti-lo ainda, principalmente quanto às questões com que lutamos agora.” (p. 174; grifos meus)


O narrador-personagem em questão mantém-se uma voz intrigante, instigante, que parece falar a verdade, ao menos a sua. Antes de começar seu relato, a pedido de Sua Majestade persa, ele invoca o deus Arqueiro:


“Assim como os poetas convocam a Musa para falar através dela, emiti um grasnido inarticulado para o Agressor De Longe.” (p. 16)


Soa a brincadeira o fato de que um narrador, estrangeiro – o que sugere estranheza –, que empresta sua voz a um deus que preside justamente à beleza, à harmonia, à poesia, à música, ao logos, à narrativa (Apolo) –, mas que emite um “grasnido inarticulado”, sugerindo qualquer coisa desarmônica e confusa. Uma voz que conta uma história, do ponto de vista não de um espartano – pois que este evidenciaria o discurso autêntico, belo e simétrico –, mas, sim, o de um servo, feio e defeituoso. Uma voz que interfere como dissonância numa partitura, a priori de uma composição concordante, mas que se expressa qual uma nota fora do tom. Algo como um intervalo de trítono, um diabolus in musica, cuja audição de certa forma perturba. Note-se que o nome do deus está, em toda a narrativa, escrito por iniciais maiúsculas e que é chamado de Arqueiro, Atirador a Longa Distância, Senhor do Arco, Agressor De Longe, remetendo à arma da qual o seu protegido e narrador-personagem é mestre, o arco e a flecha, com a qual só pode combater afastado – o que pressupõe, ao mesmo tempo, uma metáfora da própria condição social desse narrador, seu papel no campo de batalha, sua voz e sua vez na polis. Assim, também, essa voz atinge, sombriamente, o leitor da obra.


Contradição, ou jogo? De qualquer forma, luz e sombra estão, aí, num par de opostos. E a pergunta kantiana, “O que se pode saber?” perpassa as entrelinhas do texto, como um tênue feixe de luz num palco escuro.


E o servo continua:


“Se realmente me escolheu, Arqueiro, então que suas flechas com belas plumas sejam lançadas de meu arco. Empreste-me sua voz, Arqueiro. Ajude-me a contar a história.” (p. 16)


Se ele invoca Apolo, pode ser porque seu discurso seja eficaz, reto, perfeito – como as setas do deus. Ele reconhece sua condição e, humildemente, põe-se à disposição para ser usado como ser, mesmo imperfeito, para se dignar a falar a pura verdade dos fatos. Entretanto, o condicional “se”, direcionado ao deus, remete a ambiguidade. Daí, por outro lado, esse artifício de linguagem, ou elaboração estética, apresente-se na obra para lembrar-nos de que a distância entre história e ficção, verdade e ilusão, talvez se expresse, mais, como uma questão de pontos de vista, de que uma possa ser permeada ou abarcada por outra, quer dizer: até onde o literário perpassa a história e o histórico a literatura? Mas esta é uma questão que cabe mais ao romance histórico, à ficção histórica, a menos que se trate de uma realização não intencional do autor, de outro exemplo de inconsciente na escrita. Ou não.


Outra manifestação como jogo, em “Portões de Fogo”, está por certas compensações à falta de simetria, demarcadas, em alguns casos, para se pôr em maior relevo qualidades morais, sobre as assimetrias. O personagem Dienekes, veterano de guerra, era exemplo disso, uma vez que, apesar de todas as marcas horrendas que levava pelo rosto e corpo, ainda assim fora o escolhido da senhora Arete, que valorizava, antes de tudo, suas qualidades de bondade, coragem e amor: “Esse homem bom e corajoso com quem me casaria (p. 184)”. A luz da razão elege o amor, acima da forma ilusória.


Se a psicologia junguiana descreve a sombra como não sendo necessariamente má, porém “tudo aquilo que todo homem teme e despreza em si mesmo”, “algo íntimo e inquietante”, mas “que transforma a psique”, aqui se pode deduzir que, por exemplo, a ojeriza do instrutor Polynikes ao pupilo Alexandros (porque este se dedicava mais ao canto do que aos exercícios militares) se explicaria por aquele sofrer de grande desconforto interior, causado por sua incapacidade de enxergar para além da aparência, da forma. Era obcecado por simetria, por ordem e por uma luminosidade olímpica. Mal vivido que era, não reconhecia que fixação por simetria tira do eixo; que ordem demais, enlouquece; que muita luz, também pode cegar. Porém, outros trechos da narrativa revelam que ele também estava em processo de luta com sua própria sombra, pois, no fundo, admirava o jovem Alexandros.


O embate entre ordem e desordem, luz e sombras, também se depreende de um conceito entre os espartanos que dita sua noção de pertencimento, que eles chamam de esoterike harmonia e exoterike harmonia. A partir dos exercícios de phobologia, do domínio do medo, o individuo buscava adquirir um estado de serenidade tal que se sintonizava consigo mesmo, com seu daimon, semelhante ao modo como uma corda de um instrumento musical se afinava, dentro de uma tonalidade harmônica, ele vibraria somente sua nota. Isto é esoterike harmonia. Quando os indivíduos da polis chegavam nesse estágio, confluíam para uma harmonia comum, a exoterike harmonia, princípio extensível à formação da linha de combate, que guiava “a falange em seus movimentos e ataques como se fosse um único organismo, de uma única mente e vontade” (p. 75). O mesmo se aplicava à vida de casal, a um coral, à política, à devoção aos deuses.


E quanto à sua própria relação com Esparta, cidade que escolhera para si, Xeones o declara, em conversa com a senhora Arete, esposa de seu senhor Dienekes:


“_ E porquê – perguntou ela – um garoto sem cidade demonstra tal lealdade a essa região estrangeira, a Lacedemônia, da qual nunca fará parte?

(...) _ O meu tutor instruiu-me que um garoto deve ter uma cidade (...).

(...) _ Então, por que não uma pólis de ricos ou de oportunidades? (...)

(...) Respondi com um provérbio (...) : outras cidades produzem monumentos e poesias, Esparta produz homens.” (p. 136)


Tal era o fascínio que os espartanos causavam em cidadãos de outras polis que outros guerreiros chegavam a lutar ao lado deles. Mesmo assim, nem todos pareciam ter o mesmo sentimento. Na narrativa, Dekton, o filho bastardo de um espartano com uma serva de outra polis, um mothax, ou meio-irmão, odiava Esparta, por revolta devido à sua condição. Era tido como irascível, maldoso, insubmisso, de aspecto físico meio grosseiro, assim como seu caráter de “orgulho e obstinação” (p. 154). Ao menos, essa foi a descrição de Xeones, desmentida ao final da narrativa, quando o mesmo Dekton, outrora apelidado de “Galo”, revelou-se completamente de outro modo e aspecto, conforme as palavras de Gobartes, o historiador dos persas:


“_ Sou Dekton, filho de Idotychides. Foi o meu nome que você gritou quando disse Galo.

O escrúpulo força-me a declarar aqui que a descrição física desse homem apresentada pelo cativo Xeones não lhe fazia a menor justiça. O guerreiro que estava à minha frente era um espécime esplêndido na flor da idade e vigor, mais de um metro e oitenta de altura, possuidor de uma graça e nobreza de porte que desmentiam definitivamente o nascimento e a posição inferior em que, era claro, foi criado nesse intervalo.” (p. 326)


No entanto, um fundo de verdade permaneceu da narrativa de Xeones, após Gobartes revelar tudo o que lhe fora contado por aquele, registrado no documento que convenceu os espartanos do relato do historiador, apesar de alguns dados aumentados ou maquiados, serviu para que o persa fosse preservado com vida. Aqui, numa outra leitura: a literatura salva a história.


Em "Portões de Fogo", o arquétipo do guerreiro espartano atinge sua plena maturidade na experiência trágica de não titubear em executar sua meta final, tal como se expressa pelas palavras do Rei Leônidas aos seus irmãos de armas, de que ele não lutava por glória, que se tivesse salvado sua própria pele, não só ele, mas todas as pólis gregas em peso, também teriam caído:


“Mas com nossa morte honrosa, aqui, diante de desvantagens insuperáveis, transformamos a derrota em vitória.” (p. 307)


Ora, qual nível de psique seria exigido para tal atitude, senão a de alguém que, antes de vencer outros, já não tenha dominado a si mesmo e subjugado traços de medo, de puerilidade, de vício e de temeridade, nas câmaras mais recônditas de sua alma? O êxito dos espartanos nas Termópilas veio justamente com sua aniquilação, com o extermínio de todos (afora aquele que escapou, para contar a história, Xeones, na obra de Pressfield). O triunfo dos hoplitas consistiu de converter seu sacrifício numa conquista humana. Eis, portanto, um sentido de trágico bem evidenciado na obra.


O jogo narrativo em “Portões de Fogo” parece desconstruir toda uma visão de mundo que se pretenderia luminosa, uma arquitetura a priori apolínea, mas que deixa às claras fissuras, sinais de ceder aos fundamentos de uma obra mais humanizada, dionisíaca. Aponta-se para a necessidade de que a parte de Dioniso, na arte e em nós, seus leitores, seja reivindicada, para que Apolo possa se manifestar de modo mais perceptível. As aparentes contradições que a narrativa dessa obra fazem supor são justamente desmentidas pelo caráter de duplicidade estética em que o dionisíaco pode se expressar, tomado aqui numa acepção nietzscheana. Ou seja, longe do racionalismo filosófico e científico, que levaram a humanidade ao pessimismo, ao niilismo, à negação da vida, o estético é posto num patamar em que o lado obscuro, sombrio, da vida, sempre acometido por sofrimentos e projeções futuras ilusórias, é ressignificado: a arte permite um caminho aberto ao conhecimento, por meio do belo, mas sem que este seja sacrificado ou morto pela verdade.


Em “O Nascimento da Tragédia ou Helenismo e Pessimismo” (1992: 143-144), Nietzsche o explana:


“No entanto, daquele fundamento de toda existência, do substrato dionisíaco do mundo, só é dado penetrar na consciência do indivíduo humano exatamente aquele tanto que pode ser de novo subjugado pela força transfiguradora apolínea, de tal modo que esses dois impulsos artísticos são obrigados a desdobrar suas forças em rigorosa proporção recíproca, segundo a lei da eterna justiça. Lá onde os poderes dionisíacos se erguem tão impetuosamente, como nós o estamos vivenciando, lá também Apolo, envolto em uma nuvem, lá deve ter descido até nós e uma próxima geração, sem dúvida, contemplará seus soberbos efeitos de beleza.”


Luz e sombra podem, de algum modo, conviver. Aliás, é por meio de sombras que a luz pode ser bem focalizada. Igualmente, é por meio de luz que a sombra evidencia melhores contornos.


Desta forma, ao modo de conclusão, tanto a narrativa plural e enigmática de “Portões de Fogo”, quanto às conformações da sombra junguiana no combate interno dos guerreiros ali representados, como expressões de arquétipos do masculino maduro, expressam-se, ambas, qual um jogo de claro e escuro. Convém reforçar que esta construção, a partir de um exercício de percepção sensível, longe de uma verdade que se pretenda absoluta, funda-se numa epistemologia de possibilidades – qual seja: desse romance como um projeto estético que permite ao leitor perceber nuances de luzes (conhecido) e sombras (desconhecido), nele apresentadas.



[1] Sombra: Segundo a psicologia junguiana, aquela parte de nós que pode ser tanto negativa, quanto positiva, a depender de nossa maturidade psíquica no relacionamento com ela. Em especial, a sombra revela nossas mais profundas fraquezas e impulsos obscuros, temidos, destrutivos. Mas que, por isso mesmo, nos dá a conhecer quem, o que e como realmente somos. Ou seja, a sombra é uma mestra interior que nos dá a oportunidade de nos encararmos a fundo, de lutarmos contra nosso maior adversário - nós mesmos -, e assim nos superarmos, para nos tornarmos pessoas melhores.

[2] Conferir: “The Mankind Project: Empowering men to live their true potential.” “O Projeto Masculino: Empoderando homens para viverem seu verdadeiro potencial.” Pelo sítio eletrônico: https://mankindprojectuki.org/

[3] Matrioska: Do russo, ‘ϺаТЬ’, ‘mãe’. Embora no Ocidente tenham sido difundidas como bonecas “russas”, há ligações que podem ser feitas com referência à cultura japonesa dos bonecos “kokeshi”, de fundo budista, representando nossos “deuses internos”.

[4] Sobre o modo de vida espartano, do ponto de vista histórico, conferir: “Paideia: a formação do homem grego”, de Werner Jaeger, onde há um estudo específico sobre a formação cidadã, física e militar dos nativos de Esparta.


Texto publicado na RES - Revista Estética e Semiótica do Programa de Pesquisa e Pós Graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília - UnB - v. 8, n. 2 (2018). Vide sítio, página inicial: http://periodicos.unb.br/index.php/esteticaesemiotica e respectivo artigo: http://periodicos.unb.br/index.php/esteticaesemiotica/article/view/30867.

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“The Mankind Project: Empowering men to live their true potential.” “O Projeto Masculino: Empoderando homens para viverem seu verdadeiro potencial.” Pelo sítio eletrônico: https://mankindprojectuki.org/

PERFIL DO AUTOR

Max Müller Cerqueira Sobrinho

Graduado em Letras Português e Letras Francês pela Universidade de Brasília – UnB (2000 e 2004)

Mestrando em Teoria Literária – Estudos Literários Comparados – Psicologia e Literatura, pela UnB.

SANTOSHA

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