Era um bando de pontos acinzentados
Era um bando de pontos acinzentados
Era dia e era noite. Era de manhã bem cedo, com o sol ainda despontando. Era luz e era sombra. E um espírito indiferenciado pairava entre a planície e a cordilheira.
Era uma pequena comunidade atrás daquelas montanhas, por sobre as quais espargiam-se jovens raios dourados, naquela manhã de um azul índigo, batizada com um orvalho fino e meio frio. Aquarela natural, bela e polêmica. Todos ainda despertando de seu sono. No entanto, naquela longa noite de inverno, curiosamente, ninguém havia sonhado.
Era um bando de cabras ávidas e calculistas, escalando abruptamente as montanhas, à procura de saciar sua fome atroz. Comeriam tudo que encontrassem pelo caminho, toda erva verdejante, inclusive as secas, e mesmo pedras.
Era um bando de ovelhas, insossas e alienadas, com seus gemidos tímidos, em tons de tremores. Sinfonia inusitada de queixos batendo. Mas não era de frio... Reverberações de vozes interiores, pressagiando algo mais que tremores: temores...
Era um bando de abutres vorazes, saltando do alto dos picos em forma de lanças. Eram paraquedas escuros, cobrindo o céu, como nuvens de uma formação estranha, apontando em vértices, vertiginosamente, mas para baixo... Setas em direção a alvos certos...
Era um bando de galinhas correndo em direções ignaras, atônitas, sem nem mesmo saber de quem corriam... O instinto mandava correr, apenas. De repente, não era mais uma aquarela. Era uma tela de um impressionismo obscuro, cuja pintura era obra da pena de um destino de dar pena.
Era um bando de cães altamente adestrados, seguindo ordens ditadas por vozes ocultas. Era uma obediência taciturna, cega, divina. Era um comando hierarquicamente instituído e inquestionável. Era uma ação de estímulos e reflexos condicionantes de uma memória muscular primitiva, rápida, bruta, eficiente.
Era um bando de qualquer coisa sem imagem, sem nome, sem símbolo ou qualquer sinal. Era uma massa dúbia, amorfa, irreconhecível. Era tão-somente o diálogo incompreensível entre uma execução emudecedora e gritos por sobrevivência.
Era um bando de pontos pretos a disparar pontos rubros sobre pontos brancos...
Era um bando de pontos acinzentados. De um lado, sombrios pilares de cinzas verticais; de outro, montes informes de cinzas horizontais a demarcarem o horizonte, separando a planície daquelas montanhas.
Era de manhã bem cedo. Era um desses lugares comuns, como tantos outros, encobertos pela indiferença da história. Um evento efêmero, que ninguém viu, ninguém ouviu, ninguém contou. Era um dia qualquer. Após uma estranha noite. Sem sonhos.
SANTOSHA